24 de outubro de 2010

Repôr a verdade num engodo aos bracarenses


A propósito das notícias vindo a público a propósito de um suposto achado de uma antiga ponte, na Ponte do Bico, na freguesia de Palmeira, os nossos arqueólogos de serviço resolveram dar uma ajuda nesta investigação.


Porque os vestígios e as evidências não convenceram nem foram validadas, criando até a falsa notícia de que se tinha encontrado as ruínas de uma ponte, os arqueólogos David Ribeiro Mendes e Ricardo Silva assinaram um texto de opinião sobre este assunto, no Diário do Minho de 30/10/2010, que reproduzimos de seguida.

O texto apresentado é de única e exclusiva responsabilidade dos seus autores.

A arqueologia é uma área científica que visa o estudo das culturas e os modos de vida do passado, a partir da análise de vestígios materiais. É uma ciência social que aplica métodos e técnicas próprias, requerendo normas deontológicas e responsáveis e os seus executores, em Portugal, regem-se pela Lei de Bases do Património Português. Mas se a arqueologia é realizada pelos arqueólogos, já o descobrimento e a protecção do nosso património pode, e deve, ser feito pelos cidadãos.

As recentes notícias, vindas a público, sobre a descoberta da antiga Ponte do Bico, relançam, precisamente, questões de índole arqueológica, como a hipotética descoberta de vestígios de uma obra de arte, bem como de ordem social, como a intervenção dos cidadãos e a responsabilidade dos arqueólogos.

O autor da pressuposta descoberta apoiou-se quer na informação presente no Liber Fidei, e consequente transcrição pelo Cónego Avelino Jesus Costa, que refere que os limites do território de Palmeira iam do caminho de Braga até à ponte do Bico, quer na existência de uma calçada, supostamente romana, que corrobora a passagem da Via XVIII por aquele local, também defendida pelo investigador espanhol António Colmenero.

O desejo de descobrir, associado à vontade de concretizar fisicamente o achado, levou o investigador a chamar os órgãos de comunicação social para partilhar a possível monumento, não tendo a precaução de validar, junto de especialistas esta hipótese. Esta posição é reprovável porque refuta os princípios da Lei 107/01, pois o artigo 78 refere que “ Quem encontrar, em terreno público ou particular, (…), quaisquer testemunhos arqueológicos fica obrigado a dar conhecimento do achado no prazo de quarenta e oito horas à administração do património cultural competente ou à autoridade policial, que assegurará a guarda desses testemunhos e de imediato informará aquela, a fim de serem tomadas as providências convenientes.”

Ainda assim, se o autor desconhece a Lei, deveria confirmar a sua teoria junto de profissionais da área, pois tal assumpção pode estar errada, e explicamos porquê.

Admitindo que possa haver variantes (e variáveis) do traçado da Via XVIII, é natural que se multipliquem os vestígios arqueológicos quer pelas zonas que António Colmenero defende, como também o traçado pelo Norte de Montariol, defendido por Luis Fontes e, claro, o traçado que está proposto para ser classificado como Monumento Nacional, defendido por Francisco Sande Lemos, que passa pelas Sete Fontes e calçada de Adaúfe.

Relativamente ao traçado defendido por António Colmenero, pessoalmente não concordamos com essa proposta, porque verifica-se que o autor não sustenta, em milhas romanas o traçado, até alcançar a milha VI, já em território de Amares, fazendo confluir, aliás, outros itinerários. Defendemos, ainda, que a calçada, provavelmente romana que se encontra no Lugar do Ribeiro, poderá ter pertencido a um caminho de acesso a um povoado ali existente, não pertencendo, necessariamente ao traçado da Via XVIII. Recordamos que, maioritariamente das vezes, as vias não eram calcetadas na sua total extensão, e era prática usual haver calçadas à entrada dos povoados, tal como os casos das calçadas de acesso ao Castro Máximo e ao Castro da Consolação, ambos em Braga.

Uma deslocação a ambas as margens, para verificar a razoabilidade da proposta, permitiu-nos deduzir que aquele amontoado de pedras que ali jaz, não contém qualquer tipo de aparelho construtivo (nem romano, nem medieval), dando a ideia de que as pedras foram ali colocadas de forma mais rude, sem a preocupação de construir algo tão coerente como uma ponte o exigiria. Os elementos pétreos parecem formar um talude artificial de contenção/sustentação de terras.


Tal informação parece ser confirmada na Carta Militar Portuguesa (CMP 1997), onde surge um talude artificial (grande muro) representado a linhas vermelhas. Este talude parece surgir aquando da abertura da estrada que liga a rotunda da Ponte do Bico a Navarra como forma de sustentar as terras que se encontram a uma cota superior (para evitar deslizamentos para a estrada). A construção deste talude pode ser justificada pela proximidade do leito de cheia do rio Cávado, bem como pela imediata transição para uma elevação natural.

Parece-nos ter este sentido porque, se analisarmos a CMP mais antiga (1947) vê-se que o talude não era existente. Se lá estivesse em 1947, este teria sido representado, tal como o foi em 1997. Por isso, acreditamos que lá não havia talude, pelo facto de que em 1947 a estrada ainda não tinha sido aberta. Assim, quando a abriram, tiveram de compensar as forças e pressões cimeiras, sustentando-as com um talude.

Cremos, ainda, que as pedras afeiçoadas que o autor afirma estarem no local, não serão da ponte, mas sim de alguma construção, tipo casa rural ou algum moinho/azenha que tenha sido desmontado e tenham colocado lá as pedras. O trabalho daquelas pedras não pertence a nenhuma parte do aparelho de uma ponte, nem tão pouco à estrutura do “guarda-corpos” da dita ponte, pois são de uma dimensão não sustentável à construção de uma ponte. Pelo menos, as pedras não têm um talhe típico da época romana, e parecem não ter, também, da época medieval.

Surge, ainda, a questão das cotas a que assentaria a estrutura pontística, pois tal como o autor sugere que ela seria construída, há uma diferença de aproximadamente sete metros de altura entre as margens, o que implicaria uma construção não estética como defendiam os romanos e implicaria um cavalete desproporcionado na época medieval (contudo, há exemplares disto noutras construções).

Referimos, ainda, que quer a actual Ponte do Bico, quer a Ponte do Porto estão construídas em zonas onde há um estrangulamento do rio, isto é, a dimensão das margens é menor, logo mais fácil para construir uma obra de arte. No caso apontado pelo investigador, a travessia far-se-ia por um dos sítios mais largos do rio Cávado entre as pontes supracitadas, dificultando a sua construção.

Mesmo assumindo a existência do topónimo do lugar de Ponte (Amares), este fica mais a montante do sítio onde se situaria a proposta para existência da antiga ponte do Bico.

Por todos estes factores e, sobretudo pela responsabilidade ética e moral inerente à nossa profissão, sentimos a necessidade de esclarecer a população sobre estes pretensos achados, que o autor coloca como dos mais importantes da Península Ibérica. Aceitamos que tenha havido ali uma ponte, mas não validamos a teoria de que aquelas pedras pertencem a um conjunto arqueológico que justifique a existência da mesma.

Louvamos o interesse de investigação por parte dos cidadãos, porque são parte activa na preservação do nosso património e, por isso, deixamos a sugestão a todos os cidadãos que, futuramente, achando estar perante vestígios arqueológicos, informem as entidades competentes através de contactos personalizados (Extensão Territorial Norte do IGESPAR) ou através da página da Internet





Provavelmente, assim, o Estado estará a cumprir a sua função de proteger o património e os cidadãos poderão fruir livremente dele.
David Ribeiro Mendes, Arqueólogo
Ricardo Pereira da Silva, Arqueólogo

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